segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Medo que o medo acabe

Hoje eu li um texto sobre o medo e resolvi reproduzir e compartilhar com vocês. Sei que tem muita gente que não gosta do famoso textão, mas este eu garanto que vale a pena ler. É sobre o medo que mais atrapalha do que ajuda. Acredito que uma vez ou outra você já sentiu isso.



Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda uma outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi -- ou será -- vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que, sobre uma grande parte do nosso planeta, pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres.
A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.
É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção.
Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje, no mundo um muro, que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, e dizer:
"Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras.
E, se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe.


Mia Couto - Há quem tenha medo que o medo acabe.

Mia Couto (1955), pseudônimo de Antônio Emílio Leite Couto, nasceu na cidade da Beira, em Moçambique, África, no dia 5 de julho de 1955. Filho de Fernando Couto, emigrante português, jornalista e poeta que pertencia aos círculos intelectuais de sua cidade. Com 14 anos, Mia Couto publicou seus primeiros poemas no jornal Notícias da Beira

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